É um dos papas mais populares e acarinhados de sempre pelo povo, mas, na cúpula eclesiástica, Francisco motiva ódios cada vez mais difíceis de esconder. Um grupo de cardeais acusa-o mesmo de “ensinamentos heréticos” – colocando a ameaça de um cisma a pairar sobre a Igreja, mil anos depois da cisão de Roma e Constantinopla
Quem sou eu para julgar?” As palavras do Papa Francisco, aparentemente tão simples e imbuídas de compaixão, foram o mote para cimentar a união do grupo de cardeais mais conservadores do Vaticano contra o papado do jesuíta argentino, ainda mal o fumo branco se dissipara na chaminé da Capela Sistina, em março de 2013.
“Quem sou eu para julgar?”, disse-o, repetidas vezes, nos meses e anos seguintes, reforçando o incómodo na Cúria romana. Primeiro referindo-se aos homossexuais. Depois, a propósito de quase todos os temas polémicos para a Igreja: divórcio, aborto, contraceção, eutanásia.
A pergunta abala as milenares estruturas do trono de Pedro, como sucessor escolhido por Jesus Cristo. Do Papa espera-se uma sabedoria quase divina, uma certeza inabalável sobre o que é certo e errado. Esse poder está, aliás, representado na insígnia papal, com as suas chaves cruzadas (uma de ouro e outra de prata), que Jesus terá dado a Pedro, simbolizando os poderes de unir e separar, de decidir o que é permitido e o que é pecado. Na heráldica eclesiástica, as chaves simbolizam a autoridade espiritual do Papa como vigário de Cristo na Terra.
A pergunta, só por si, é considerada ofensiva por muitos dos influentes membros com poderes no Conclave. Francisco prefere citar o Evangelho (Mateus, VII: 1-2): “Não julgueis para não serdes julgados”. Para o Papa, um cristão não deve apontar o dedo aos outros, mas estender-lhes a mão para levantá-los. Logo após a sua eleição, e dirigindo-se aos padres que ouvem os católicos em confissão, pediu “mais paciência” e tempo para “ouvirem os seus dramas e as suas dificuldades, com ternura”. E, caso o confessor não os possa absolver, apelava, “que dê uma bênção, mesmo sem absolvição sacramental”. O Papa alertava para a falta de confiança no perdão de Deus, que só leva a uma “amargura existencial” que “impede as pessoas de se levantarem de novo, quando caem”. A Igreja, defende, “deve ajudar as pessoas a perceber que é sempre possível recomeçar, desde que Jesus perdoe”.
O primeiro Papa jesuíta da História, e o primeiro não europeu em mais de 1200 anos, foi uma escolha invulgar para suceder ao conservador Bento XVI e era expectável que a sua visão de um papado mais próximo dos pobres e dos excluídos gerasse mal-estar junto dos setores mais tradicionalistas do Vaticano. A sua própria postura (renunciando a vários luxos e à pompa excessiva em torno do cargo), bem como a interpretação do que deve ser um Papa (“sou apenas mais um bispo”) geraram, desde logo, inúmeros anticorpos. Como assim, um Papa que conduz o seu pequeno carro, que carrega as malas, que paga a conta do hotel? Que agarra num telefone e fala diretamente com as pessoas? Mas nada faria antever o nível de brutalidade a que chegou a guerra nos bastidores da Cúria romana. Como definiu um teólogo esta semana ao jornal britânico The Guardian, acusar o Papa de heresia é o equivalente a, num conflito armado, recorrer à bomba atómica.
A heresia, um termo utilizado tanto pela Igreja Católica como pelas igrejas protestantes, é “uma posição contrária à verdade revelada por Jesus Cristo”, ou “a mera dúvida de um dogma da fé divina”, por uma pessoa batizada. A punição para um herege é a excomunhão – ou seja, o Papa seria afastado não apenas do cargo mas também da própria Igreja.
As primeiras acusações públicas contra Francisco foram crescendo de tom ao longo do último ano, mas ganharam nova força quando surgiram numa carta aberta, divulgada em setembro passado. Mais de cinco dezenas de católicos descontentes – entre eles um cardeal, um bispo e o antigo diretor do banco do Vaticano – acusam o Papa Francisco de sete posições heréticas. Ao Guardian, um “proeminente clérigo”, que também assinou essa carta, confessou mesmo: “Mal podemos esperar que ele morra. É impublicável o que dizemos dele em privado.”
A “gota de água” terá sido uma simples nota de rodapé num texto intitulado Amoris Laetitia (a Alegria do Amor). A exortação de Francisco, publicada em abril do ano passado, é um texto longo e muito cauteloso, composto por nove capítulos que se baseiam nos resultados de dois Sínodos dos Bispos sobre a Família, realizados em 2014 e 2015. É no capítulo 8 que surge a polémica referência de Francisco, explicitando que pessoas que vivem segundos casamentos ou em união de facto “podem viver na graça de Deus, podem amar e crescer na vida da graça e da caridade, e para tal podem receber a ajuda da Igreja”. Acrescenta ainda, para maior descontentamento da ala conservadora do Vaticano, que “em certos casos, isto poderá incluir a ajuda dos sacramentos”.
A questão do divórcio tem sido central nesta polémica – na verdade, nunca deixou de ser motivo de discórdia no seio da Igreja, com maior ênfase desde os anos 60 e o Concílio Vaticano II. Francisco tem condenado de forma subtil a hipocrisia dos ricos e poderosos, que conseguem pagar advogados e provar que um casamento não foi consumado à luz dos preceitos que a Igreja exige (podendo ser anulado), enquanto outros se separam e refazem as suas vidas, sem que exista algo de imperdoável nisso (mas ficam impedidos de voltar a ter relações sexuais e são afastados da comunhão).
A realidade – sabem-no o Papa, os cardeais, os bispos, os padres e todos os católicos – é que há milhões de crentes classificados como “pecadores” e que sofrem por verem as portas da Igreja fechadas. Há quem as abra, aceitando batizar crianças de mães solteiras, ou permitindo que uma mulher divorciada comungue na missa de domingo, ou fechando os olhos à orientação sexual daqueles que juntam a sua voz aos cânticos litúrgicos. Mas tudo é feito em segredo, quase em vergonha, uma ínfima exceção no mundo católico. O que o Papa Francisco pretende é escancarar as portas, com compaixão – mas ainda há demasiadas trancas e cadeados de complexos segredos a impedirem uma abertura assim no Vaticano.
Na lindíssima sala Clementina do Palácio Apostólico do Vaticano, os votos de Natal do Papa para os seus cardeais tiveram, por tudo isto, este ano um travo mais amargo. Com o seu típico bom humor, começou por citar um conselheiro do Papa Pio IX, para dizer que sabia bem a difícil tarefa que iniciara: “Fazer reformas em Roma é como querer limpar a esfinge do Egito com uma escova de dentes.”
Ainda não se tinham desfeito os sorrisos amarelos e já ele prosseguia, falando do “verdadeiro perigo” que ameaça o Vaticano: “os pequenos grupos”, os “conluios” de “traidores da confiança”, os que “se aproveitam da maternidade da Igreja” e se deixam “corromper pela ambição ou pela glória vã” e que, “quando delicadamente são afastados, autodeclaram-se falsamente mártires do sistema e do 'Papa desinformado', em vez de recitar o mea culpa”.
A crítica atingiu, como uma lança certeira, o cardeal norte-americano Raymund Burke, que lidera a ala conservadora do Vaticano e a onda de contestação pública ao papado de Francisco. Burke é a personificação de tudo o que o Papa jesuíta repudia em Roma: o fausto, a pompa, o luxo desmesurado de quem se julga superior aos outros mortais.
O grande embate entre os dois terá ocorrido poucas semanas após a eleição de Francisco, quando o Papa expurgou a ordem dos Frades Franciscanos da Imaculada, que aliavam a devoção à missa tridentina (em latim, de costas para a congregação) às ideologias de direita, conquistando adeptos nos EUA. Essa Igreja distante, impenetrável, acessível apenas a alguns “eleitos”, não poderia estar mais longe da visão de Francisco para a Igreja, bem expressa no mote que escolheu para o seu brasão papal: “miserando atque eligendo” (“com misericórdia o elegeu”). A frase é uma referência a uma passagem no Evangelho de São Mateus, em que Jesus escolhe um publicano (cobrador de impostos) para o seguir. Com os publicanos não se podia falar, comer ou rezar. Eram vistos como traidores que tiravam à sua gente para dar aos poderosos. Mas, como lembrou Francisco, ao explicar a sua admiração por esta passagem, “Jesus parou, olhou-o sem pressa, com olhos de misericórdia; olhou-o como ninguém o fizera antes. E aquele olhar abriu o seu coração, fê-lo livre, curou-o, deu-lhe uma esperança, uma nova vida, como a Zaqueu, a Bartimeu, a Maria Madalena, a Pedro e também a cada um de nós. Mesmo quando não ousamos levantar os olhos para o Senhor, o primeiro a olhar-nos é sempre Ele. Tal como muitos outros, cada um de nós pode dizer: eu também sou um pecador, sobre quem Jesus pousou o seu olhar (...) Jesus sabe ver para além das aparências, para além do pecado, do fracasso ou da nossa indignidade. Ele vê a dignidade de filho que todos temos, talvez manchada pelo pecado, mas sempre presente no fundo da nossa alma”. Francisco quis inscrever no seu brasão esta ideia de aceitação: “Deixemo-nos olhar por Jesus, deixemos que o seu olhar nos devolva a esperança e a alegria da vida.”
Poucos meses depois do início do pontificado de Francisco, o cardeal norte-americano que se notabilizava por entrar nos recintos com um manto tão comprido que necessitava de ser seguido por pajens, foi afastado do cargo que exercia no tribunal superior de Roma e acabou também desautorizado na demissão do responsável pela Ordem de Malta (terá dito que foi o Papa a decidir o afastamento, Francisco negou tal facto e voltou a readmitir o clérigo, afastando Burke de mais decisões).
Se Burke o pretende atacar, invocando a imutabilidade da doutrina, Francisco responde com citações do Evangelho e com a lei da Cúria, recorrendo por exemplo ao Donum Veritatis (o Dom da Verdade), documento em que se reafirma que todos os católicos devem praticar a submissão da vontade e do intelecto aos ensinamentos do Papa e que aqueles que estiverem em desacordo nunca o devem fazer em público. Sobre a relação entre verdade e doutrina, prefere sublinhar que “a misericórdia é verdadeira”, e é o “primeiro atributo” de Deus. “Deus é um pai zeloso, atento, pronto para acolher qualquer pessoa que dê um passo ou que tenha o desejo de dar um passo na direção de casa. Ele está ali a observar o horizonte, espera-nos, está já à nossa espera. Nenhum pecado humano por muito grave que seja pode prevalecer sobre a misericórdia ou limitá-la.”
Por isso, o Papa defende o encontro com todas as pessoas e não apenas as “justas”, para chegar aos que estão longe, aos “marginalizados” e oferecer-lhes a salvação. Esta é a atitude que melhor segue os ensinamentos de Jesus, considera, admitindo que alguns reagem mal a “esta Igreja, que quer ir ao encontro de quem sofre”, para superar preconceitos, “sem sentir-se perfeita”.
Tudo esta guerrilha de palavras acontece, lembra o professor Paulo Mendes Pinto, devido à mediatização da figura de Francisco. “Durante séculos, ninguém sabia o que o Papa fazia ou pensava”, mas hoje ele entra-nos pela casa dentro todos os dias e faz doutrina, se assim pudermos dizer, “não pelos documentos eclesiásticos que promulga mas com o que diz a meio de uma viagem de avião, entre o lugar x e y...”, nota o professor de Ciência das Religiões.
“A Igreja Católica tem congregações e grupos com visões sociais e políticas muito diferentes, e isso pode ser uma riqueza, mas o Vaticano terá de aprender a trabalhar num regime mais próximo do que é uma democracia, e com mais transparência”, defende.
“Foi João XXIII, nos tempos modernos, o primeiro a defender que seria um bem geral sacudir a poeira imperial que foi caindo, desde Constantino, sobre o trono de Pedro. O Papa Francisco continua às voltas com essa herança pesada e paralisante”, lembrava Frei Bento Domingues, num texto de opinião no Público, no mês passado.
Os ataques contra Francisco, considera, são comparáveis às dificuldades vividas por Jesus Cristo “ao propor uma mudança de mentalidade aos seus contemporâneos e aos membros do povo a que pertencia” e que “encontrou uma grande adesão no mundo dos excluídos e uma resistência implacável entre os privilegiados”. Mas, “assim como aconteceu com Cristo”, diz Frei Bento, “nenhuma ameaça o tem paralisado”.
Para Paulo Mendes Pinto, estas acusações de “heresia” soam a “desespero da oposição dentro do Vaticano” e poderão mesmo ser “o seu canto de cisne”. Se assim não for, considera, “estamos a dois passos de ter um cisma”. Porque, faz notar, “o que está em causa não é um Papa que, durante uma homilia, diz alguma coisa 'fora da caixa'. Toda a sua postura, todo o seu pensamento está a ser contestado”.
O Papa não se pronunciou sobre estas acusações de forma explícita, “nem é esperado que o faça”, considera Mendes Pinto. “Creio que estas cartas abertas e este tipo de posições públicas, a continuarem, irão levar à convocação de um novo Concílio”, para discutir questões doutrinais no âmbito da sexualidade e da vida familiar.
E talvez seja mesmo essa a vontade última de Francisco: o Papa que se atreveu a reconhecer não ter todas as respostas para os problemas do mundo e, em busca de uma Igreja mais justa e misericordiosa, ousa questionar o seu próprio papel.